EFEITOS DE REDES E ATUAÇÃO DE FORNECEDORES NA ADOÇÃO DE NOVAS PRÁTICAS CONTÁBEIS POR MUNICÍPIOS DISTANTES
André Carlos Busanelli de Aquino1
Fabrício Ramos Neves2
Resumo: O artigo discute a difusão de mudanças compulsórias na gestão financeira de municípios em regiões geográficas isoladas, e apresenta os canais de transmissão preponderantes. A posição que as prefeituras ocupam na rede de municípios importa. A partir da abordagem institucional para redes sociais, a pesquisa usou o caso da adoção compulsória de um novo plano de contas contábeis pelos governos locais. Especificamente o estudo observou como a mensagem sobre a adoção compulsória chegou e foi operacionalizada em um cluster de 10 prefeituras no interior da Bahia. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com contadores, secretários de finanças e fornecedores de softwares de contabilidade da região. As evidências indicam que assessorias terceirizadas foram os principais canais de difusão e de operacionalização da nova prática. Ao terceirizarem a contabilidade, as prefeituras assumiram uma postura passiva, com um entendimento limitado da reforma. A configuração da rede poderia potencialmente estar impedindo a circulação ampla da mensagem sobre a reforma ou a distorcendo, reduzindo assim o engajamento de prefeituras no processo de mudança.
Palavras-chave: Municípios, Contabilidade Aplicada ao Setor Público, Difusão, Redes, Instituições.
NETWORK EFFECTS AND SUPPLIERS’ ACTING ON THE ACCOUNTING PRACTICES BY DISTANT LOCAL GOVERNMENTS
Abstract: The article discusses the diffusion of compulsory changes on the financial management cycle in municipalities from a geographically isolated area and presents the main channels for such diffusion. The position of the city halls at the municipalities network matters. Based on an institutional approach to social networks, the research used the case of the compulsorily adoption of a new chart of accounts by local governments. Specifically, the study observed how the message reached and was operationalized by a cluster of 10 city halls from an isolated area in state of Bahia. Semi-structured interviews were conducted with accountants, finance secretaries and accounting software vendors. The evidences indicates that outsourced consulting firms were the main diffusion channels, but also who implemented the practices. As the city halls outsource the accounting function they assume a passive posture regarding the accounting change and keep a limited understanding about such reform. The network configuration could potentially be impeding the circulation of the message or distorting it, reducing the governments propensity to engage to the change process.
Keywords: Local governments, Public Sector Accounting, Diffusion, Networks, Institutions.
1. INTRODUÇÃO
Q uando novas práticas a serem adotadas por governos locais são determinadas pelas autoridades federais, é esperado que governos de diversas regiões as adotem de forma homogênea? A baixa adesão de parte das prefeituras no Brasil é em geral explicada por falta de equipes capacitadas, tecnologia, recursos financeiros, e com um menor monitoramento pelos órgãos de controle (Agyemang & Yensu, 2018; Azevedo, Lino & Diniz, 2019).
Governos locais, como outras organizações do setor público são constantemente pressionadas por mudanças, e carregam o estigma de serem lentas, formais e nem sempre eficientes. Tais mudanças são impostas por reformas constitucionais, leis ordinárias federais ou estaduais, com maior ou menor monitoramento de órgãos de controle, como os Tribunais de Contas. Para mencionar alguns exemplos recentes, a Constituição Federal de 1988 mudou significativamente a autonomia e as responsabilidades dos municípios, e introduziu instrumentos de planejamento (PPA, LDO e LOA), enquanto a regulação de responsabilidade fiscal (Lei Complementar 101/2000), e de transparência (Lei Complementar 131/2009), trouxeram limites ao endividamento público, uso de instrumentos de gestão de risco, reforço da figura da transparência orçamentária e reafirmação da participação popular no ciclo orçamentário. A constante pressão por mudanças tem levado na maior parte das vezes a processos incompletos de adoção das novas práticas ou a interrupção após pouco tempo de adoção (ex. fraca institucionalização dos mecanismos da Lei de Responsabilidade Fiscal).
Pouco se sabe sobre o que levaria governos locais no Brasil a serem mais ou menos propensos a implantar e manter novas práticas vindas de uma reforma compulsória. Em geral, em casos similares a este em estudo, a literatura nacional associa algumas barreiras à baixa coerção dos órgãos de controle (Cardoso, Aquino & Pigatto, 2014), baixa capacitação (Melo, Prieto & Andrade, 2014), precariedade dos sistemas informatizados (Ravanello, Marcuzzo & Frey, 2015; Braga & Filho, 2016), a ausência de recursos ou baixa estrutura ou falta de suporte da gestão (Santos, 2015; Sasso & Varela, 2018). Outros exemplos dessa literatura incluem os casos do orçamento programa (Azevedo & Aquino, 2016), de conselhos municipais monitorando fundos de políticas públicas específicas (Carneiro, 2002), do regime de responsabilidade fiscal (Cruz et al, 2013), e de portais de transparência (Cruz et al, 2012; Cruz et al, 2016; Escala Brasil de Transparência, da CGU e Ranking Nacional da Transparência do Ministério Público Federal).
Por sua vez, a literatura internacional destaca que a adoção de novas práticas compulsórias ou não por organizações é afetada pela difusão e configuração das redes (Choi et al, 2010; Young et al, 2001). A discussão inclui as potenciais distorções na transferência da informação quando a mensagem que trata das novas práticas circula pelas redes (Sahlin & Wedlin, 2008) decorrente das lógicas institucionais que distorcem o entendimento e aceitação dos atores que conectam às redes (Thornton et al, 2005; Sahlin & Wedlin, 2008).
No nosso melhor conhecimento, não temos notícias da discussão do efeito institucional de redes (social networks) em reformas compulsórias no setor público brasileiro. O objetivo da pesquisa é discutir o efeito de redes nas quais os governos estão conectados facilitando ou dificultando a difusão de mudanças compulsórias. Para isso uma região geográfica isolada do centro emissor da reforma foi analisada para observar se o isolamento em relação ao centro emissor da reforma tem efeito em como aquela área se engaja no processo de mudança. A análise considera municípios distantes como aqueles que estão em áreas geográficas isoladas em relação à capital do estado, que é a sede de Tribunais de Contas e Conselhos Regionais de Contabilidade. Essas áreas estariam mais próximas da periferia das redes profissionais e federativa que conectam a administração pública dos municípios (ver Gibbons, 2004). Utilizamos o caso da harmonização das normas contábeis brasileiras às normas internacionais, iniciadas em 2008, e focamos especificamente na implementação compulsória de um novo Plano de Contas (PCASP), cujo prazo para adoção foi em 2014, logo no início do processo de harmonização.
Adotamos a teoria de redes e propomos que os canais de difusão do conteúdo utilizados afetam a propensão de governos locais adotarem novas práticas. Para isso, a pesquisa utiliza a teoria de redes (network theory) de Borgatti e Halgin (2011a) e o institucionalismo organizacional (organizational institutionalism) sobretudo baseado nos trabalhos de Greenwood et al (2017), Thornton et al (2012) e Sahlin e Wedlin (2008).
Selecionamos uma área no interior do Estado da Bahia, geográfica e logisticamente afastada do centro emissor da normatização (do processo de harmonização das normas contábeis), e analisamos 10 prefeituras da região. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com servidores das prefeituras (contadores e técnicos das secretárias de finanças), funcionários de prestadores de serviço (assessorias de contabilidade e empresas de software de administração financeira e contábil), assim como representantes do Conselho Regional de Contabilidade e auditores do Tribunal de Contas durante o ano de 2016.
2 BREVE DESCRIÇÃO DA HARMONIZAÇÃO DAS NORMAS CONTÁBEIS BRASILEIRAS
A intenção de disparar uma mudança no padrão contábil concomitantemente para mais de 5.500 municípios é uma característica marcante de como o país promove mudanças no ciclo de gestão financeira. A harmonização da contabilidade pública no Brasil aos padrões internacionais recupera a obrigatoriedade do uso de registros patrimoniais (além dos orçamentários), o que estava parcialmente previsto na Lei 4.320/1964. A previsão de registros patrimoniais recebeu historicamente pouca atenção dos governos, das autarquias e dos órgãos de controle.
Lentamente a discussão da contabilidade patrimonial e o uso ampliado do regime de competência ganharam força, por ação de grupos técnicos do Conselho Federal de Contabilidade e da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) . Em 2008, a Portaria MF nº 184 anunciou que o país convergiria suas normas contábeis para as normas internacionais de contabilidade (IPSAS – International Public Sector Accounting Standards), lançando prazos de adoção para os 3 níveis de governos para adoção completa até 2013. A coordenação ficou a cargo da STN, que em 2009 lançou o primeiro manual de recomendações (MCASP - Manual da Contabilidade Aplicada ao Setor Público). O processo de convergência completo, materializado no MCASP incluia (i) um plano de contas padronizado (PCASP), (ii) conjunto de relatórios padronizados (DCASP) e (iii) um conjunto de políticas contábeis orientadas pelas IPSAS.
Representantes dos entes federativos, Tribunais de Contas, empresas de assessoria e de softwares de contabilidade para governos chegaram a se envolver no desenho do conteúdo do projeto de harmonização, a convite da própria STN. Porém houve um afastamento dos Tribunais de Contas a partir de 2014 (Lino, 2015). O processo nos seus primeiros anos 2012-2015 foi marcado por uma série de postergações de prazos, e algo que era visto como ‘urgente e a solução última’ passou a algo ‘a ser revisto’ (Lino, 2015). A difusão desse projeto teve forte movimento entre 2008 e 2012 com palestras ministradas geralmente nas capitais .
Em 2015 a situação mostrava que os prazos para adoção das políticas contábeis não seriam cumpridos. Mais de 1 mil municípios não haviam enviado as Demonstrações Contábeis Anuais para a consolidação do Balanço do Setor Público Nacional, divulgado posteriormente em abril de 2016 (Ministério da Fazenda, 2017), indicando que a adoção do PCASP não estava ocorrendo amplamente.
A velocidade da adoção do novo plano de contas variou nos grupos de municípios em diversas regiões dos estados brasileiros (relatório CNM, 2017). A pressão para a adoção do novo plano de contas dependia da postura do Tribunal de Contas de cada estado. No caso da Bahia, o Tribunal de Contas dos Municípios (TCM-BA) estabeleceu a data de 1º de janeiro de 2013 para a migração dos jurisdicionados para o PCASP. Em termos práticos, os dados orçamentários e contábeis enviados periodicamente ao TCM-BA pelo sistema SIGA deveriam seguir o novo plano de contas a partir desta data. Apesar do envio poder ser feito pelo método “de-para” tanto para Siconfi da STN quanto para o SIGA do TCM-BA, a frequência envio bimestral de dados tornava quase que inviável o método “de-para” no caso do sistema SIGA.
3 EFEITOS INSTITUCIONAIS NA DIFUSÃO DA MENSAGEM DA REFORMA
A literatura sobre mudanças em contabilidade (accounting change) envolve diversas perspectivas teóricas (Baxter & Chua, 2003), e tem mostrado que a mudança em uma prática de contabilidade não é algo “linear, previsível, controlável, exclusivamente técnica ou bem-comportada” (Baxter & Chua, 2003, p.107). Tanto a literatura de redes nas suas diversas vertentes (Justesen & Mouritsen, 2011; Rogers, 2003; Strang & Soule, 1998), quanto a literatura institucional (Sahlin & Wedlin, 2008) têm mostrado que o processo de difusão em redes é de relevância para explicação de porquê as organizações aderem ou não às propostas de mudanças, sejam elas compulsórias ou voluntárias.
A difusão de uma mensagem ou ideias no campo organizacional se dá por redes (Sahlin & Wedlin, 2008). O anúncio de uma reforma, do conteúdo (do que se trata), sua justificativa (as razões utilizadas para legitimar a mudança das práticas) e explicações de como operacionalizá-la compõem o que chamamos aqui de “mensagem da reforma”. A informação de que “existe uma reforma em curso”, seus diversos prazos e a quem eles se aplicam, além de detalhes técnicos da proposta são as questões objetivas na mensagem. A mensagem também inclui juízos de valor e motivações do emissor e transmissores da reforma, como um conjunto de argumentos que estes usam para defender e justificar as novas práticas ou eventualmente desconstruí-las, a modificando (Meyer, 1996; Sahlin & Wedlin, 2008). Nem sempre a mensagem está consolidada, mesmo quando sai do emissor. No caso em questão, a mensagem é transmitida, materializada em discursos, normas e manuais, assim como, nas atualizações dos sistemas eletrônicos que coletam dados fiscais e contábeis dos municípios (seja pela Secretaria do Tesouro Nacional ou pelos Tribunais de Contas). Assim, a mensagem não é compilada, tampouco constante e neutra, na fonte ou mesmo conforme circula pela rede (dada edição da mensagem e surgimento de contínuas e sobrepostas etapas de justificação e convencimento).
Tais mensagens circulam nas redes, que são o conjunto de atores (indivíduos, organizações, equipes), os nódulos das redes, e suas inter-relações (ou ausência delas) que denotam caminhos que ligam direta ou indiretamente tais nódulos (Burt, 1992; Brass et al, 2004; Borgatti & Halgin, 2011a). Em cada rede podem existir diversos canais para uma mensagem percorrer e chegar a um receptor, cada nódulo que a mensagem passa dará o fluxo pelo qual a mensagem circula (Borgatti & Halgin, 2011a). Eventualmente, vazios estruturais na rede (ausência de relação entre nódulos ou entre partes da rede) dificultam ou, em última instância, bloqueiam a circulação da mensagem para certa parte da rede (Burt, 2015). Estes vazios podem ser superados pela atuação de intermediários (brokers), atores que atuam conectando nódulos anteriormente não conectados.
Como os nódulos podem têr múltiplas afiliações, se os atores estiverem conectados a diversas redes (Stadfeld et al, 2016), existirão caminhos alternativos de fluxo de informação. Cada rede pode ter um padrão dominante de fluxo, dependendo de quais nódulos são preferidos na circulação da mensagem. Pode ser observada uma difusão ampla em que todos os atores do campo receberiam o conteúdo da reforma de inúmeras fontes (broadcasting em Sahlin & Wedlin, 2008; unconstrained network em Gibbons, 2004). Alternativamente pode predominar uma relação hierárquica, com nódulos de conexão regionais (Gibbons, 2004), em uma transmissão em cadeia (chain mode of imitation) ou mediada (mediated by other organizations and actors) (Sahlin & Wedlin, 2008).
À medida que circula pela rede, a mensagem é editada e alterada por atores que atuam como transmissores (Meyer, 1996; Sahlin & Wedlin, 2008). Estes transmissores alteram a mensagem segundo seu próprio entendimento e as suas motivações (Sharma & Good, 2013). Em certas condições, o transmissor destaca alguns pontos positivos (e omite outros) da proposta (Sahlin & Wedlin, 2008, p.226). Esses transmissores ou intermediários são repositórios (carriers) do conteúdo (Sahlin-Andersson & Engwall, 2002). Exemplo de tal editoração por motivações, seria o uso de discursos de vendas por consultores, empresas de software de contabilidade e assessorias para criar em seus clientes a percepção de necessidade das soluções comerciais.
Os consultores então poderiam ser vistos como condutores de “pacotes de inovações gerenciais”, segundo Malmi (1999), ou como “carriers”, na visão institucional de Sahlin-Andersson e Engwall (2002). Tais consultores adotam estratégias para codificar e distribuir o conteúdo sobre as práticas a serem adotadas por seus atuais ou potenciais clientes, incluindo justificativas, conhecimento técnico e experiências anteriores (Downe et al, 2004). Assim, influenciam a mensagem, moldando-a quando discutem, aconselham, sugerem e desenham soluções, atuando como certificadores e avaliadores da ideia, ou ignorando parte da reforma proposta (Christensen & Skærbæ, 2010; Qu & Cooper, 2011; Meyer, 1996).
Estes condutores levam a mensagem para os demais atores da rede, que em última análise são os receptores. Como as práticas contábeis são novas, é natural esperar que estes desafiem ou se choquem com práticas convencionais. As práticas convencionais seguem uma lógica institucional, ou uma lógica de ação que induz como as escolhas e decisões são feitas, porque recursos são empregados daquela forma, o padrão de interação social, a forma de negociação e barganha naquela organização (Thornton et al, 2012). Tais lógicas são estruturas abstratas e não percebidas pela maior parte dos indivíduos (taken-for-granted). Em uma organização, existem múltiplas lógicas atuando ao mesmo tempo, mas os indivíduos irão operar de acordo com uma lógica dominante. (Greenwood et al, 2017).
Essas lógicas irão estruturar a forma como gestores, contadores, auditores, políticos entre outros atuam. Como tratado em Thornton et al. (2005), as lógicas de mercado, do estado e de profissões são distintas em relevantes aspectos. Por exemplo, em uma empresa de consultoria, o conjunto de regras de negócios e processos vigentes estão estruturados em uma lógica de mercado voltada ao lucro e eficiência, enquanto na prefeitura pode prevalecer a lógica de execução orçamentária anual, visando usar toda dotação até o encerramento do exercício. Tais lógicas possuem estruturas de valores diferentes.
No momento em que a mensagem que circula pela rede chega à um grupo de indivíduos, tal mensagem passa a ser interpretada, em um processo de sensemaking (Weick, 1995) em que um entendimento coletivo emergirá da interação daqueles indivíduos em torno da mensagem. Dependendo da interpretação feita, pode surgir resistência caso os benefícios da nova ideia não sejam percebidos, ou caso o grupo entenda que há choques com interesse do grupo ou da organização. Assim, o conflito entre os valores e conceitos presentes na reforma e os valores e conceitos implícitos na lógica dominante na organização demandará maior trabalho institucional por parte do normatizador e órgãos de controle, ou seja, ações para justificarem e alterarem a percepção inicial sobre a reforma (Meyer & Hammerschmid, 2006; Mena & Suddaby, 2016). Quanto maior a diferença das lógicas institucionais entre os recebedores da mensagem e da própria mensagem, maior o trabalho institucional que deverá ser feito para esclarecer, elucidar, convencer. Em caso de redes, se os intermediários ameaçam distorcer o conteúdo da mensagem pois não entendem a mensagem, o trabalho institucional deveria ser feito em todos pontos da rede que se pretende usar como canal principal fluxo dominante.
A circulação da mensagem (de que existe uma reforma em curso, seu conteúdo, a quem ela se aplica e as razões para adotá-la) pode chegar aos extremos da rede em intensidades e conteúdo distintos, além de ser interpretada de diversas formas. As organizações, ao interagirem (ex. Prefeituras, Câmaras, Tribunais de Contas, etc.) estruturadas pela legislação, valores e boas práticas, criam e compartilham novas formas de realizar suas atividades que poderão ser replicadas pelos demais (Meyer & Rowan, 1977; Tolbert & Zucker, 1983).
4 METODOLOGIA
Para analisar o efeito da configuração das redes profissionais na difusão em mudanças compulsórias no ciclo de gestão financeira no Brasil, observamos a adoção do novo plano de contas, como parte do projeto de harmonização das normas internacionais de contabilidade. A unidade de análise é a prefeitura municipal, como receptora da nova prática a ser adotada de forma compulsória. O objetivo não é descrever a harmonização das normas internacionais em geral, mas apenas analisar no caso da adoção do plano de contas como a mensagem chega no governo local e é trabalhada localmente.
Partimos da lógica de “pequenas amostras” (small-N analisys) em uma estratégia de escolha com propósito específico, para identificar padrões e relações explicativas entre os casos (Harding & Seefeldt, 2013). Tal estratégia de amostragem - purposeful sampling strategy – não pressupõe generalização para toda população, mas permite analisar casos cujas características contribuem para a discussão em questão (Rapley, 2014; Patton, 2014). A escolha da região foi teoricamente orientada (Eisenhardt, 1989) buscando uma região que apresentasse distanciamento da capital federal e da capital do estado. Entre as diversas regiões similares no país, foi selecionado o Sertão Produtivo no sudoeste da Bahia por conveniência de acesso de um dos pesquisadores para condução das entrevistas.
A região faz divisa com norte do Estado de Minas Gerais, é delimitada a oeste pelo Rio São Francisco, tem fracas ligações rodoviárias com o Distrito Federal, com o sul e sudeste do país pela BR-30. A ligação mais forte é com outras regiões do interior do Estado, como Barreiras (BR-430), e Vitória da Conquista (BA-262). Os demais municípios são ligados com ramais estaduais. A ligação ferroviária ainda não está implantada na região. Os aeroportos mais próximos em operação comercial são Montes Claros (370 km) e Vitória da Conquista (276 km). Assim, a conexão entre os centros urbanos da região é predominantemente feita por ônibus intermunicipais. Apenas Guanambi (13% da população e 18% do PIB da região) possui linhas diretas de ônibus para as capitais Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, tornando-se potencial centro da região (SEI, 2013). Nesta região as prefeituras se relacionam com a Inspetoria Regional do Tribunal de Contas dos Municípios da Bahia (TCM-BA), localizada no município de Caetité. O TCM-BA, além de usar sistema eletrônico de coleta de dados da execução orçamentária e de gestão fiscal para auditoria dos jurisdicionados (versão atual denominada SIGA – Sistema Integrado de Gestão e Auditoria), distribui suas equipes de auditores em inspetorias regionais. A auditoria dos municípios da região, é feita com base nos dados coletados pelo coletor eletrônico, e por auditorias in loco.
Nossa análise identificou: (i) o quanto o ‘plano de contas’ estava implantado na prefeitura, (ii) as conexões dos atores locais nas redes (configuração da rede), e (iii) o canal que a mensagem da reforma percorreu até chegar ao receptor. A análise focou os padrões em cada caso (within-case), com uso do método pattern matching (Mahoney, 2000). Destaca-se que não é objetivo assumir relações causais únicas (Aus, 2009), dado que podem ser múltiplas as explicações para os efeitos e o método não permite individualizá-las. Por fim, não assumimos a priori uma posição de refletividade definida dos atores (Greenwood et al, 2015). A partir das entrevistas, fizemos a codificação das respostas identificando (i) os atores que seriam os nódulos da rede, (ii) se alguma mensagem acerca da reforma era retransmitida, (iii) e como a mensagem era recebida localmente.
Para configurar a rede, usamos como proxy para o fluxo de informação, não a frequência da interação, como normalmente é feito em análises de redes sociais (ver Borgatti, 2005), mas de forma qualitativa e comparada, tanto a frequência quanto o próprio fluxo da mensagem.
Da forma mencionada em Rapley (2014), adotamos duas rodadas de seleção de casos. Entre os 20 municípios que compõem a região analisada, iniciamos com 4 municípios distintos em uma maximum variation sampling, em que observamos que duas assessorias concentravam todo processo contábil das prefeituras da região. Na segunda rodada partimos para outros 6 municípios sempre buscando a maior variabilidade possível entre os casos.
As evidências foram coletadas via entrevistas semiestruturadas (Bryman, 2012) com validação com dados secundários em relatórios de Tribunais de Contas, da STN, notícias do CFC e CRCBA. Na primeira rodada de 4 entrevistas a duração foi de 25 minutos por entrevista, e na segunda fase de 6 entrevistas foi de 1 hora. Foram entrevistados contadores e representantes das assessorias de contabilidade e seus fornecedores de softwares de contabilidade. O protocolo das entrevistas cobriu: (i) a organização da função contabilidade, (ii) o nível de atenção à reforma da contabilidade em curso, (iii) a adoção do plano de contas (etapa da reforma), (iv) os canais de difusão utilizados e (v) a se mensagem foi editada.
Os municípios analisados e as principais dimensões da análise são apresentados na Tabela 1. Todas as prefeituras analisadas terceirizam de alguma forma a execução da contabilidade para duas “assessorias de contabilidade” (Assessoria 1 e 2). Os modelos variam na presença de funcionários da assessoria na própria sede da prefeitura, e na forma como os dados são informados pela prefeitura para a assessoria. Em todos modelos de terceirização a contabilidade é assinada por um contador da assessoria, e em 9 casos os servidores da prefeitura não participam do processo de registro contábil feito pelas assessorias. Em Pindaí, o funcionário da própria assessoria fica lotado permanentemente na sede da prefeitura para repassar os dados a serem registrados à assessoria contratada. Em Carinhanha, a assessoria treinou servidores técnicos da própria prefeitura para fazerem os registros contábeis, e o contador da assessoria (100km de distância) fazia visitas mensais. Já em Guanambi, o contador terceirizado fica na sede da prefeitura, em contato direto com o Secretário de Finanças.
Em todos os casos é a assessoria de contabilidade que indica os procedimentos contábeis a serem adotados pela prefeitura. Os servidores da Secretaria de Finanças não participam na deliberação sobre políticas contábeis. As assessorias têm um fraco monitoramento sobre suas atividades. Partindo da taxonomia de Lino, Carvalho, Aquino e Azevedo (2019), equipes de controle interno restritas a uma pessoa sem apoio efetivo para exercício da função foram consideradas como sendo de atuação cerimonial, ou seja, para legitimar o município frente ao Tribunal de Contas. O controle interno se resume à um servidor declarado como responsável pelo controle interno, mas apenas cerimonialmente para atender exigência do TCM-BA, como relatado em um dos casos:
“[aqui] só existe controle interno para atender a legislação, principalmente, ao órgão de controle externo”.
Nestes casos, em geral, o servidor não tem formação específica em contabilidade e não possui registro no conselho regional. O servidor acaba apenas validando as práticas da assessoria, pois assina os relatórios para prestação de contas produzidos pela assessoria.
Tabela 1: Características dos Casos Analisados (divididos pelas assessorias de contabilidade que os atendem)
Guanambi |
Urandi |
Pindaí |
Sebastião Laranjeiras |
Brumado |
Caetité |
Carinhanha |
Palmas de Monte Alto |
Igaporã |
Candiba |
|
População 2015 mil hab. [PIB per capta em milh. R$] |
85,7 [10,1] |
17,3 [7,3] |
16,8 [4,3] |
11,5 [5,3] |
69,2 [14,7] |
52,5 [8,4] |
29,9 [4,6] |
22,4 [5,2] |
16,2 [5,5] |
14,7 [5,2] |
Economia local (Serviços, Indústria, Agropecuária) |
S,A,I |
S,A,I |
S,A |
S,A |
S,A,I |
S,A,I |
S,A |
S,A |
S,A |
S,A,I |
Contador é servidor? |
Não |
Não |
Não |
Não |
Não |
Não |
Não |
Não |
Não |
Não |
Onde está o contador (ou o contrato de terceirização) |
S.Fazenda |
S.Adm. Planej. |
S.Adm. Planej. Controladoria |
S.Adm. Planej. |
S.Adm. Planej. Controladoria |
S.Adm. Planej. |
S.Adm. Planej. Controladoria |
S.Adm.e Finanças |
S.Adm.e Finanças |
S.Adm. Planej. Controladoria |
Nível de terceirização da função contábil |
Parcial(4), Assessoria 1 |
Total, Assessoria 1 |
Total, Assessoria 1 |
Total, Assessoria 1 |
Total, Assessoria 2 |
Total, Assessoria 2 |
Total, Assessoria 2 |
Total, Assessoria 2 |
Total, Assessoria 2 |
Total, Assessoria 2 |
O software de contabilidade é operado na Prefeitura? |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Software de contabilidade (1) |
Licenciado, marca 1 |
Licenciado, marca 1 |
Licenciado, marca 1 |
Licenciado, marca 1 |
Licenciado, marca 2 |
Licenciado, marca 2 |
Licenciado, marca 2 |
Licenciado, marca 2 |
Licenciado, marca 2 |
Licenciado, marca 2 |
Atuação do Controle Interno |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Cerimonial |
Com quem tem maior interação? (3) |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
Tipo da comunicação com órgãos reguladores |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Restrita; ocasional |
Membro de associações de municípios [atuação] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Sim [fraca] |
Grupo de estudos NBCASP |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Orientação de NBCASP(3) |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
STN;TCM;ES |
Data de adoção do plano de contas (PCASP) |
2016 |
2016 |
2016 |
2016 |
2013 |
2013 |
2013 |
2013 |
2013 |
2013 |
Quem implantou PCASP (3) |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
Treinamento servidores(3) |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
ES/ACE |
Benchmark declarado(3) |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
ACE |
Consolidação BSPN2016 (2) |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Sim |
Aprovação Contas – 2014 |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Com ressalvas |
Fonte: Dados da pesquisa. Notas: 1 – A identidade dos fornecedores de software de contabilidade foi preservada. 2 – Consolidação sem ressalvas, verificado pela lista de entes consolidados no anexo I do Balanço do Setor Público Nacional (BSPN), e verificada se haviam pendências na lista de “declarações inconsistentes” divulgada pela STN em 30/06/2016. 3 – ACE – Assessoria de Contabilidade externa, ES - Empresa fornecedora do software que faz o papel do software de contabilidade (SIAFIC) local. 4 – O caso de Guanambi é o único que o contador mesmo sendo terceirizado fica nas dependências da prefeitura, e executa o processo internamente.
Existe uma forte relação entre assessoria e software de contabilidade adotado. A tabela 1 mostra as prefeituras divididas em dois grupos, cada qual com sua assessoria e fornecedor (marca) de software. Quem escolhe o software de contabilidade a ser usado pelas prefeituras na região são as assessorias de contabilidade. Entrevistados esclareceram que quando a prefeitura assina o contrato com a assessoria de contabilidade e o software utilizado naquele momento pela prefeitura não é o mesmo utilizado pela assessoria de contabilidade recém contratada, a prefeitura é solicitada adquirir licença de uso do software utilizado pela assessoria. Da mesma forma, se a assessoria troca de software, as prefeituras da região atendidas por ela também trocam de software conforme relatado por um dos servidores dos municípios entrevistados.
“O sistema é indicado pela firma de contabilidade [assessoria] e a prefeitura realiza a licitação da licença do software para utilização. O sistema é instalado no servidor no município, podendo a firma ter acesso remoto ao mesmo”.
O processo de adoção do plano de contas, como será discutido, está diretamente associado às escolhas da assessoria contratada.
5 CONFIGURAÇÃO DA REDE E CIRCULAÇÃO DA MENSAGEM
A configuração da rede afeta a velocidade e a intensidade de disseminação da mensagem (Rogers, 2003; Gibbons, 2004), assim como a mensagem que chega, dado o entendimento e a motivação dos atores nos nódulos centrais (Sahlin & Wedlin, 2008). Aqui procuramos configurar a rede que conecta governos em relação à regulação da gestão do ciclo financeiro, e afeta a difusão das reformas relacionadas.
Na perspectiva do governo local, como receptor da reforma de contabilidade, ao receber a mensagem de que existe uma demanda por mudança de suas práticas, podem surgir ali resistências ou mesmo desinformação. De forma resumida, no caso da harmonização das normas de contabilidade, os emissores da reforma são a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e Conselho Federal de Contabilidade (CFC) em Brasília, e espalhados no território nacional estão os Tribunais de Contas, como fiscalizadores da legislação fiscal e contábil e os Conselhos Regionais de Contabilidade (CRC), portanto, transmissores da legislação para governos estaduais e prefeituras.
As Câmaras Municipais também podem influenciar o processo caso atuem de forma mais ativa na aprovação e controle do orçamento e das contas municipais. Por fim, fornecedores de software, consultorias e assessorias de contabilidade transmitem o conteúdo da reforma ao prestarem serviços para prefeituras, autarquias e câmaras. Ainda podem estar envolvidos de alguma forma as associações de municípios, escolas de governos e sindicatos. Cada um atua em diferentes níveis na transmissão e edição da mensagem da reforma.
As relações entre os atores são estruturadas institucionalmente (Owen-Smith & Powell, 2008), pelas competências constitucionais dos atores e funções do contador nas prefeituras, ou contratos com associações ou fornecedores privados. O indivíduo na função de contador, possui registro profissional, e por isso tem relação com o órgão de registro e certificação profissional CRC, com acesso ao delegado regional do órgão. Ao assumir a responsabilidade pela contabilidade de um órgão público, o contador pode ser solicitado a prestar esclarecimentos ao auditor do Tribunal de Contas ou à STN.
A relação entre secretário de finanças e o contador é condicionada pela descrição do cargo e hierarquia na prefeitura (Brass et al., 2014). O prefeito e secretário de finanças acessam sua associação de municípios local ou a Confederação Nacional dos Municípios esperando orientações relevantes. Por fim, contadores públicos tenderiam a ter certa interação, assim como os diversos secretários de finanças da região, e os prefeitos nas suas redes políticas.
O contador, o secretário de finanças e o prefeito possuem múltiplas afiliações, pelas diversas redes que participam. As relações entre nódulos, atores nesta rede, são ‘pessoa-pessoa’, dada associação profissional e de função (ex. auditado-auditor, contador terceirizado-secretário de finanças) e indivíduo-organização (contador-STN, em que o indivíduo não chega a se relacionar com outra pessoa especificamente). Por exemplo, a relação ‘Prefeitura-Tribunal de Contas’ se dá tanto noível pessoal entre servidores das secretarias de finanças das prefeituras e auditores externos do Tribunal, quanto na relação mais impessoal da Prefeitura com o resultado emitido pelo Tribunal na aprovação das contas. Já no caso da relação ‘Prefeitura-STN’, em geral o contador tem menor contato com técnicos da STN, e interage pelo sistema de coleta de dados (chamado Siconfi), em uma interação unidirecional.
A mensagem da reforma poderia chegar por qualquer dessas afiliações (Borgatti et al, 2011b), seja pelas relações profissionais ‘pessoa-pessoa’, seja pelas relações funcionais (ex. contador-STN; prefeito-Tribunal). Por fim, a mensagem pode circular por diversos meios de comunicação aos quais os servidores locais poderiam de forma passiva ou ativa ter acesso ao conteúdo da reforma em curso (ex. congressos, treinamentos, revistas especializadas, assessorias, e-mails, etc.).
Estas relações potencialmente existem em todos municípios analisados, variando o nível de interação e, portanto, o fluxo da mensagem em questão. Uma prefeitura pode ter baixa frequência de demandas e solicitações de apoio formal ao Tribunal de Contas, nenhuma participação em cursos oferecidos pelo órgão, e pouco contato com auditores que vêm anualmente fazer auditoria in loco, mas uma maior participação na associação de municípios.
Usando a configuração da rede de Gibbons
Gibbons (2004) propõe seis estruturas de redes de regionalização que afetam de forma distinta os receptores das reformas dependendo da força da relação entre os atores da rede e do grau de centralidade. A autora impõe restrições na formação da rede e separa configurações descentralizadas e regionalmente condicionadas. Apesar da centralidade aumentar a velocidade e amplitude da difusão da mensagem, a taxa de adoção diminui na medida que o ator tem contato com mais casos que não adotam a nova prática.
A figura 1 combina a configuração de 3 estruturas regionalmente condicionadas baseada nas propostas de Gibbons (2004, p.940). Uma parte da rede condicionada é aquela em os atores só acessam a informação que chega pelos seus pares regionais, pois suas ligações são restritas àquele grupo e à região geográfica. As simulações da autora mostram que redes condicionadas reduzem a velocidade da difusão, apesar de manter as mensagens claras. Nestes casos os primeiros a adotarem as novas práticas (first adopters) são centrais na rede, mas a influência deles reduz à medida que se tem maior contato com não aqueles que adotam as práticas.
Na proposta da autora, algumas regiões podem atuar como centros de difusão, enquanto outras dependem de disseminação contínua do conteúdo pelas estruturas de redes. Aplicando a figura 1 para o caso em questão, a localização do emissor da reforma em Brasília e a legitimação dos Tribunais de Contas sancionando práticas fiscais sugerem a disseminação hierárquica da mensagem, chamada de “hierarchy among regions” por Gibbons (2004, p.940). Na Figura 1, o emissor da reforma discriminado pela relação STN-CFC dissemina a mensagem da reforma para toda federação, recebida e retransmitida pelos Tribunais de Contas distribuídos nas capitais (relação tipo 1).
Sequencialmente, em um segundo nível de disseminação, a mensagem é replicada pelos Tribunais de Contas e Conselhos Regionais. A forma como a mensagem chega nos receptores finais pode variar no modelo de Gibbons (2004) nos 3 tipos usados nesta análise. No padrão hierárquico dentro da região (hierarchy among regions), exemplificado pela microrregião 1 na figura, as prefeituras se relacionariam direto com o Tribunal de Contas e os contadores com seus Conselhos Regionais (relação tipo 5). Neste caso as prefeituras não mantêm canais de comunicação em temáticas que possam ter a reforma de contabilidade como algo a ser tratado. Em um segundo, a prefeitura atua como elo entre a região e os replicadores da reforma, representado pela microrregião 2 na figura adaptada de Gibbons (2004, p.940), chamada de “central region connecting cliques via one region per clique”. Tal elo poderia ser exercido pela capital do Estado ou por um Município de maior porte na região. Nesta típica microrregião 2, a prefeitura líder possui forte relação com o Tribunal de Contas (relação tipo 2), e relações menos fortes com as demais prefeituras que orbitam em torno do líder (relação tipo 4). Por fim, um terceiro tipo (microrregião 3) seria o que a autora chamou de região conectada com tênues relações com outras regiões (central region connecting cliques via scant ties to all regions). Nos casos da microrregião 3, a mensagem não passa necessariamente pela prefeitura da capital, ou mesmo pela principal prefeitura na região, as relações do Tribunal com a capital e demais prefeituras são mais fracas (tipo 3) que as relações entre as próprias prefeituras (relação tipo 4).
Adicionalmente, incorpora-se a todos os padrões de relações outros transmissores da mensagem da reforma como assessorias de contabilidade e empresas de software de contabilidade. Os diversos consultores e especialistas das empresas com fins-lucrativos captam a mensagem direto da STN e dos Tribunais de Contas (6a), e a transmite às prefeituras (por cursos, palestras ou contratos de consultoria e assessoria). Tais empresas também levam demandas das prefeituras ao emissor da reforma, que pode vir a usá-las para adequar a reforma à realidade local (6b). Assim, consultores e técnicos prestam serviços aos municípios e transferem a mensagem da reforma e conteúdo técnico correlato (7).
Figura 1: Configurações de redes no campo organizacional da reforma de contabilidade
Fonte: Figura adaptada de Gibbons (2004). A figura foi apresentada pela primeira vez em 2016, em versão de congresso desse artigo, no Congresso Nacional de Administração e Contabilidade. Em seguida, foi também incorporada em Sediyama et al (2017) para análise de outra região do país.
Importante destacar que nos 3 modelos apresentados na Figura 1 adaptada de Gibbons (2004), existem vazios estruturais, sendo que na microrregião 1 até as prefeituras dentro da microrregião estão isoladas, tendo contato apenas como o nódulo central da microrregião.
Com relação à editoração da mensagem que circula, Tribunais de Contas e Conselho Regional de Contabilidade ao terem maior pressão para se legitimarem, são mais propensos a assumirem uma posição mais cautelosa em relação à reforma, caso venham a criticá-la, já que é um projeto da relação STN-CFC. Assim, caso sejam contrários, os Tribunais e Conselhos Regionais tendem mais a se omitir do que editar a mensagem da reforma teorizando contra a mesma (ao menos publicamente). Já outros atores, como a Confederação Nacional de Municípios, associações profissionais e de municípios pelo país, e centros acadêmicos, são impulsionados a defenderem seus associados, mesmo que tenham de adotar uma posição mais crítica em relação à reforma. Ainda, servidores de prefeituras ou de governos de Estados, consultores de fornecedores de software ou de assessorias podem se posicionar a favor de uma adoção meramente cerimonial das práticas, ou sugerir saídas pragmáticas e superficiais para burlar certos requisitos normativos. Assim, dada lógica comercial de empresas fornecedoras de software e assessorias, o discurso de venda com argumentos pró aquisição de um novo serviço associado à reforma, pode favorecer uma adoção superficial dessas reformas.
Já a forma de disseminação em cascata (Sahlin & Wedlin, 2008), com a mensagem sendo transmitida por Tribunais de Contas ou Conselhos Regionais de Contabilidade, seria mais propensa a manter a mensagem com menor edição e mais fiel à original da relação STN-CFC - apesar de não ser homogênea considerando a diversidade dos 33 Tribunais no país tratada por Aquino, Azevedo e Lino (2016a) e por Lino e Aquino (2018). Uma saída é contar com o apoio dos treinamentos comerciais. Se a mensagem corre o risco de ser editada por Tribunais e Conselhos Regionais, o desvirtuamento da mensagem pode ser ainda mais crítico se for editada por múltiplos atores, com suas diferentes motivações, níveis de interpretação e lógicas institucionais.
6 DIFUSÃO DO PCASP NO SERTÃO PRODUTIVO DA BAHIA
Implantação do PCASP e Softwares de contabilidade.
Em 2012 as prefeituras da região já tinham decretos municipais criando grupos de trabalho para se prepararem para a harmonização, e sobretudo o foco eminente da adoção do PCASP. Apesar do movimento ser incentivado pelo TCM-BA, os grupos de trabalho foram mera formalidade, e as decisões foram tomadas pelas assessorias e fornecedores de software. Mesmo não tendo sido mencionadas nos decretos municipais que criaram os grupos de trabalho, tanto contadores quando assessores relataram que o processo, desde a redação dos decretos, foi realizado pelas assessorias. Tais assessorias se reportavam diretamente ao secretário de finanças, com baixa participação dos servidores da prefeitura.
Da forma como a mudança foi desenhada, a adoção do plano de contas, foi em última análise, uma questão de adequação do software de contabilidade. Assim, as empresas de software tiverem um papel proeminente no processo, pois a versão do software deveria contemplar o novo plano de contas (PCASP). Quando em 2013 o TCM-BA se posicionou abertamente que iria adotar o PCASP no seu sistema de coleta de dados ‘SIGA’, a Assessoria 1 utilizava um software que ainda não estava operando no novo plano de contas. A Assessoria 1 com total autonomia para recomendar o software contábil decidiu alterar seu software, apesar de ter mantido envio dos dados para o BSPN em 2016 usando o “de-para” com apoio de planilhas eletrônicas.
No mesmo ano, a Assessoria 2 já operava com um aplicativo que possuía a “versão PCASP” atualizada desde antes do ano de 2013, e, consequentemente seus clientes cumpriram o prazo de envio de suas demonstrações. Em ambos os casos, a implantação do PCASP ocorreu diretamente pela inclusão de novas rotinas eletrônicas no sistema, feito pelos fornecedores de softwares, sendo as poucas decisões adicionais sobre a adequação local ao PCASP ficado a cargo das assessorias, como a já mencionada decisão da troca do software. Como a adoção do PCASP não envolve mudança de rotinas internas às prefeituras, apenas uma readequação nas rotinas de uso da informação, e eventual integração com outros sistemas legados, o processo pode ter sido facilitado. Contudo, o mesmo não deve ser esperado em outras etapas do projeto da harmonização em curso.
Redes de controle, federativa e profissionais
Como já previsto, os nódulos de uma rede (contadores, prefeitos, assessores) têm múltiplas filiações por estarem conectados a diversas redes (Stadfeld et al, 2016). No campo organizacional de governos locais, no tema gestão financeira e contabilidade, no mínimo 3 redes podem ser mencionadas. Duas redes organizacionais (de controle e federativa) e a rede da classe profissional dos contadores. Em nenhuma dessas redes uma mensagem deliberadamente com o objetivo de defender e justificar a reforma circulou na região.
A rede organizacional de controle tem como nódulo a prefeitura, os Tribunais de Contas, o Ministério Público e a STN. Na prefeitura os atores diretamente envolvidos são o prefeito, o contador e o controle interno. Os Tribunais de Contas seriam os principais replicadores da mensagem vinda da STN, pois são a principais fontes de coerção para cumprimento da legislação fiscal, orçamentária e contábil na federação. Contudo, nem sempre o apoio dos Tribunais de Contas foi algo evidente e pleno (Lino, 2015).
Na Bahia, o TCM-BA passou a divulgar o PCASP apenas em 2012 depois de decidir alinhar seu sistema de coleta de dados (SIGA) ao PCASP, 3 anos depois do anúncio da obrigatoriedade anunciada em Brasília. A partir de então, o Tribunal passou a informar aos jurisdicionados com mensagens automáticas pelo seu sistema SIGA, os prazos, modelos, informes técnicos e notificações sobre não-conformidades encontradas nas contas dos municípios. Como as prefeituras analisadas franquearam o acesso ao SIGA para suas Assessorias terceirizadas, os próprios servidores das prefeituras não recebiam diretamente as informações.
Assim, a difusão nesta rede se resumiu a comunicados curtos e cursos de 1 dia na capital do Estado e cursos aos técnicos municipais . Tais eventos de curta duração, apesar de sensibilizar a comunidade, têm pouca efetividade em dar detalhes sobre como fazer e como implementar os novos procedimentos padronizados. Ainda, os servidores que atendem aos eventos quando retornam à sua base de trabalho têm dificuldade em replicar o conteúdo aos colegas.
Na rede federativa, a prefeitura se relaciona com as agências e prepostos dos outros níveis de governo, incluindo legislativo e judiciário. Prefeitos se relacionam com os diversos ministérios em Brasília, com governador do Estado, deputados e senadores de seu partido, sempre em busca de apoio. A rede federativa também envolve ainda associações, como a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Como a STN não tem entrepostos locais nos estados e municípios, como é o caso da Secretaria da Receita Federal, a rede federativa dependeria das relações pessoais dos prefeitos dentro de seus partidos, e da atuação mais estruturada das associações de municípios e das diversas iniciativas da CNM .
Em 2013, a CNM se envolveu na questão para apoiar seus associados, reativou o “Fórum de Contadores”, e enviou sua equipe técnica para representar os municípios junto aos grupos de debate da reforma coordenados pela STN. Além disto, divulgou um cronograma de implantação de todas mudanças previstas, dois estudos e uma cartilha na internet. Contudo, os prefeitos e contadores não foram efetivamente envolvidos, a mensagem não chegou.
Quanto às redes profissionais, o Sistema CFC-CRC possui regionais nos Estados e delegacias em diversos municípios no país, ligando mais de 500 mil profissionais registrados. Além de eventos de curta duração, o sistema CFC-CRC informou a rede por e-mails e boletins eletrônicos semanais, contudo predominantemente em assuntos voltados à contabilidade privada. O sítio eletrônico do CRC-BA ou não tratou ou ficou desatualizado nas questões sobre a reforma em questão.
Em resumo, a mensagem sobre a reforma da contabilidade circulou de forma fraca e tardia na rede de controle, e de forma ainda mais fraca na rede federativa e profissional.
A função exercida e o fluxo da mensagem entre indivíduos
Nas entrevistas foram relatados sempre 3 atores: servidores públicos da prefeitura, contadores das assessorias e consultores das empresas de software. A função que estes atores exercem nas prefeituras os coloca nas redes em que a mensagem circula.
A questão da reforma de contabilidade circulou principalmente na rede de controle. Os nódulos dessa rede na prefeitura são o contador e o controle-interno, em contato com Tribunal de Contas e STN principalmente. Nos casos em questão, como controle interno é cerimonial (ver Lino et al., 2019), e a função de contabilidade foi franqueada às Assessorias, o efeito direto disto é a ausência de nódulos dessa rede dentro da prefeitura. Os demais contadores que atuam na prefeitura, distribuídos em outras secretarias em funções diversas, não estão conectados na rede de controle, e apesar de conectados pela rede profissional CFC-CRC, são indiferentes à questão da reforma em questão, por não afetar a sua rotina de trabalho.
Como relatado nas entrevistas, os servidores da secretaria de finanças têm contato com os contadores das Assessorias, mas atuam isolados nas suas respectivas prefeituras, sem troca de informações, opiniões ou sugestões de melhores práticas entre eles. O contato de servidores da secretaria de finanças com o Tribunal de Contas e STN não ocorre, já que a função contabilidade que puxa tais relações foi terceirizada. O contato Tribunais-STN é com as Assessorias. Uma delas tem um posto avançado em Salvador para lidar diretamente com demandas do Tribunal de Contas.
Os contadores das Assessorias também mantêm forte relação com os consultores das empresas de software. Tais consultores por sua vez participam de redes de consultores e profissionais de desenvolvimento de aplicativos de outros fornecedores. As empresas de software, assim como outras de maior porte no país que atuam neste segmento, participam ativamente dos grupos de trabalho da STN para defender os interesses da indústria de sistemas de informação para governos. Portanto, a centralidade das redes profissionais não passa por contadores das prefeituras, mas pelos contadores das Assessorias e consultores de fornecedores de software, que são conectados diretamente com a STN e Tribunais de Contas.
“O sistema é instalado no servidor no município, e nós temos acesso remoto.” (Assessoria 1)
Configuração da rede e o principal canal de difusão
A região em questão tem uma configuração da microrregião tipo 1 (Figura 1) porém com fracas relações tipo 5, e com intenso uso de relações do tipo 6a e 6b. As prefeituras de Salvador e de Guanambi não foram mencionadas com fonte de referência, por não exercem centralidade na rede. Na rede federativa as relações encontradas são tão fracas que podem ser desconsideradas. Já na rede de controle a referência é a STN e Tribunal de Contas, porém a ligação de ambos não é com a prefeitura, mas com empresas de software.
Para a reforma analisada, como a readequação do software é central nas novas práticas a serem adotadas, os consultores dessas empresas eram o principal canal de transmissão da STN para a região. Como o Tribunal entrou tardiamente na difusão da mensagem, as empresas de software já haviam antecipado a adequação de suas soluções e passaram a ser a referências das assessorias quanto à solução e operacionalização.
“Em relação a estrutura conceitual, estamos nos reunindo agora no final do mês juntamente com o pessoal dos sistemas de contabilidade para tratarmos das demonstrações contábeis e os relatórios do encerramento Anual 2016 de todas as entidades. Vamos fazer uma análise de todas as peças.” (Assessoria 1)
O efeito escala das empresas de software permitiu que elas atuassem conectando o vazio estrutural entre prefeituras e a STN (atuação típica de brokers na literatura de redes). Tais empresas autofinanciaram sua participação nos grupos da STN para discutir as primeiras versões da reforma de 2009 a 2014 (GTCON e GTREL), para defender os interesses do setor, e repassaram informações e tendências em treinamentos e atualização de sistemas para seus clientes, incluindo assessorias que terceirizam a contabilidade de municípios. Uma das empresas de software chegou a tentar manter um sítio eletrônico para ajudar governos clientes a se atualizar sobre a reforma .
Resultado similar foi encontrado em Sediyama et al (2017) para uma região em Minas Gerais. Porém, naquela região as empresas de software ofereceram cursos in-company aos servidores das próprias prefeituras. No caso em questão, o treinamento foi dado para as Assessorias, os servidores das prefeituras não foram envolvidos, a implantação do PCASP se deu nas sedes das assessorias, em sistemas operados por funcionários das assessorias.
Lógicas institucionais e a teorização na reforma
O caminho predominante da mensagem dessa fase da reforma é: ‘STN – Empresas de software – Assessorias de contabilidade – Prefeituras’. Sabe-se que cada um dos nódulos envolvidos na rede potencialmente altera o conteúdo da mensagem, segundo suas motivações e lógicas institucionais operantes (Sahlin & Wedlin, 2008; Sharma & Good, 2013). Os indivíduos que atuam como nódulos das redes apresentam características (perspectivas, entendimentos, opiniões) das organizações em que eles próprios operam.
Nas redes federativa e de controle as lógicas institucionais presentes têm raízes comuns, e compartilham valores similares. Foge ao escopo desse artigo aprofundar na gênese e características dessas lógicas, mas é já bem tratado na literatura que organizações do setor público brasileiro operam em uma tradição legalista e orçamentária (Aquino & Batley, 2016; Azevedo, 2016), com traços de clientelismo e de tensão entre burocracia e camada política (Nunes, 2010). Em raros casos aparece uma lógica de busca por eficiência, e na grande maioria das vezes e contextos predomina o ‘uso do orçamento para não perder a dotação’, isolamento das funções (‘cada setor por si’) sem claras metas organizacionais, menos meritocracia e mais relações pessoais de favorecimento. Apesar de servidores de STN e Tribunais de Contas nas carreiras técnicas se posicionarem a favor da eficiência no setor público, não é tão evidente que suas próprias organizações seguem esta lógica cotidianamente.
Já na rede profissional, do CFC-CRC, existe uma forte carga normativa dada pelas expectativas do papel do profissional. Profissões como a contabilidade carregam fortes lógicas institucionais (Thornton et al, 2005). No caso brasileiro, a separação entre contadores do setor privado e público faz com que além da lógica da profissão, cada grupo tenha comportamento distinto pela lógica da organização em que opera (setor privado ou público). Pode-se dizer que contadores em governos operam na lógica institucional típica dos governos, com alguma influência normativa (ex. código de ética) do conselho profissional.
Por outro lado, nas assessorias de contabilidade e nas empresas de software existe uma lógica institucional de mercado. O principal objetivo destas empresas é a otimização de fluxo de caixa e eficiência operacional. Independentemente do quanto conseguem tal otimização e das ferramentas gerenciais usadas, em última instância a lógica de mercado nas assessorias e empresas de software significa que estas alocam recursos (em projetos ou novos ativos) esperando um retorno financeiro, estão propensas a demitir funcionários em caso de baixo desempenho, e capacitam equipes esperando que o treinamento contribua para a atividade da empresa.
A mensagem da reforma é construída pela STN valorizando a adoção pela ‘comparabilidade da informação contábil’, ‘uma consolidação confiável do BSPN dada adoção do novo plano de contas’, ‘a possibilidade de geração de informação de custos para tomada de decisão’. Tal argumento a favor da troca do plano de contas envolve ‘facilidade de substituição’, ‘atendimento à nova regulação’. Já as empresas de software e assessorias, justificam a adoção do PCASP de forma distinta. Em busca de mercado e receita, os fornecedores de software oferecem treinamentos visando ganho de novos clientes e market-share para seus aplicativos ‘atualizados com as novas normas da STN’, em relação aos outros sistemas que não conseguiram dar este passo . As assessorias ‘vendem’ a manutenção do contrato ou serviços adicionais como algo ‘necessário para evitar reprovação de contas pelo Tribunal’, ‘necessário para evitar negativação junto à STN’. E assim, ajudam os governos a cumprir cerimonialmente os prazos e determinações dos órgãos de controle.
“A maioria das prefeituras não se preocupa com a contabilidade, apenas com a prestação de contas. Poucas começaram a buscar entender”. (Assessoria 1)
A chegada da mensagem (existe uma reforma..., necessária pois..., útil para...) na prefeitura se dá pela interação dos servidores com seus prestadores de serviços, consultores e assessores, apesar de ser mínima, como apontam as entrevistas. A maior interação de assessoria e servidores se dá no momento da venda ou renovação de serviços. Apesar dos consultores e assessores serem potenciais condutores de inovações gerenciais ou de esclarecimento (Malmi, 1999; Sahlin-Andersson & Engwall, 2002) no caso em questão como a implantação é feita na assessoria, os servidores não se envolvem. Não há resistência por parte dos servidores pois a mudança da arquitetura do plano de contas não é observada nas prefeituras em questão, apenas pelas empresas de software e assessorias, que aceitam e reveem suas práticas dada motivação comercial envolvida.
Portanto, o cenário na região é de ausência de ações de convencimento, explicação das razões, e do como fazer junto aos servidores especializados. Em última instância os governos locais dessa área não possuem uma justificativa para adoção da continuidade da reforma que estava por vir, mas apenas motivos para entregar o que está sendo demandado pelos reguladores mesmo sem perceber a utilidade.
A resposta típica foi e continuará sendo o descolamento entre a prática cotidiana e a prática solicitada pelo regulador, que é entregue apenas de forma cerimonial (Bromley & Powell, 2012). Nesta etapa do projeto de harmonização da contabilidade pública, os baixos esforços de convencimento não impediram o cumprimento cerimonial, pois a adoção do plano de contas foi feita nas assessorias. Nas próximas fases do projeto de harmonização das práticas este traço da rede pode vir a ser um sério limitador, dados que os novos procedimentos contábeis demandarão um envolvimento maior de diretores e políticos. Como dito por um dos entrevistados:
“Nunca houve muito interesse por parte dos gestores nas informações contábeis patrimoniais, mas essa realidade está mudando, recentemente algumas prefeituras estão entrando em contato conosco, principalmente por seus gestores e secretários para participarem em conjunto de eventos promovidos pelos órgãos e com maior interesse nas informações contábeis”. (Assessoria 2)
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES
Mudanças organizacionais dependem de esforços na geração de mensagens claras sobre a relevância e forma de operacionalizar uma mudança, e como esta chega aos que irão implantar as mudanças. O caso da adoção do plano de contas no setor público mostrou uma difusão em cascata (Sahlin & Wedlin, 2008), com uma configuração das redes em que as empresas de software completaram os vazios estruturais entre STN, Tribunais de Contas e as prefeituras da região isolada. Tal vazio estrutural se dá principalmente pela baixa atuação do Tribunal de Contas e do Conselho Regional de Contabilidade como replicadores.
A adoção do plano de contas se deu pela mudança das rotinas na sede das assessorias, e não nas prefeituras. Portanto, mesmo que a terceirização da contabilidade tenha facilitado a implantação de mudanças superficiais (como o PCASP), não houve mudança de rotina na prefeitura. A mensagem da reforma e do projeto de harmonização chegou muito fraca às prefeituras, sem um pleno esclarecimento das justificativas e razões de todo projeto de harmonização. Contudo, a mudança foi facilitada pela ausência de conflitos entre lógicas institucionais. Apesar da lógica essencial do projeto de harmonização, estar mais associado à uma lógica de accountability pela divulgação da situação patrimonial do ente público, e não sensibiliza a lógica legalista e orçamentária vigente nas prefeituras, a adoção do plano de contas como passo inicial pedia apenas uma atualização de sistemas.
A lógica de mercado das assessorias se alinhou à lógica legalista e orçamentária (das prefeituras) que não viam relevância na adoção do regime de competência para geração de informação patrimonial. De forma pragmática, a lógica comercial leva empresas de softwares e assessorias a venderem soluções para um compliance superficial ao projeto de harmonização.
Na atual fase do projeto de harmonização da contabilidade, não foi suficiente a criação dos grupos técnicos em Brasília para envolver transmissores da mensagem. Em 2017, as prefeituras estavam condicionadas às suas inter-relações regionais, e empresas de software e assessorias são o único vínculo entre prefeituras e órgãos de controle. As etapas seguintes do projeto de harmonização, que envolvem a adoção das políticas contábeis específicas, pode trazer ainda mais dificuldade de uma difusão homogênea da prática contábil.
Os resultados podem também explicar outras mudanças organizacionais compulsórias em que predomina a adoção cerimonial podem ser citados, como adoção de controle interno, transparência (Carneiro, 2002; Cruz et al., 2012, 2013, 2016), instrumentos de planejamento (Azevedo & Aquino, 2016). Analisando as redes e suas configurações no processo de difusão de reformas no ciclo financeiro em nível local, pode-se considerar que as Prefeituras e Câmaras que são os receptores de mudanças organizacionais. A posição dessas Prefeituras e Câmaras na malha de municípios pode ser um aspecto relevante para desenvolver estratégias de difusão dessas reformas. O ponto da rede em que se encontram, e sua influência na rede de municípios (centralidade) está associada ao nível de atenção do contador em reação à mensagem “existe uma reforma em curso” (Aquino et al., 2016b). Dado que a dispersão geográfica do país é uma realidade que o regulador deve enfrentar, como tal distanciamento pode ser reduzido pela melhor circulação das mensagens é uma questão relevante para a difusão. Se uma difusão por cascata é adotada, pode ser essencial evitar a concentração dos canais de transmissão, e envolver Tribunais como replicadores evitando vazios estruturais.
O objetivo do estudo não é generalizar os resultados da microrregião para o país ou para o Estado, e sim levantar padrões de difusão da mensagem. A configuração da rede poderia potencialmente estar impedindo a circulação ampla da mensagem ou a distorcendo. Tais resultados são aplicáveis a outras reformas do ciclo de gestão financeira de governos, pela lógica de transferibilidade (Rapley, 2014) a contextos similares. Primeiro, existe significativa similaridade com as funções do ciclo financeiro são organizadas na malha de municípios, ou seja, o ciclo financeiro é operado por equipes da área de finanças, controle e contabilidade. Segundo, a forma como municípios e seus fornecedores se conectam em rede é similar, as redes profissionais (contadores, economistas, advogados), federativa e de controle, são as mesmas para a federação, com envolvimento de fornecedores de software e consultores, e têm os mesmos emissores em Brasília. A variabilidade se dá justamente nos vazios e distâncias entre nódulos. Estudos similares em outras regiões e condições são incentivados e devem permitir a comparação com outros cenários, o que certamente evidenciará novas lacunas teóricas de pesquisa.
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Como referenciar
Aquino, A. C. B. de; Neves, F. R. (2019). Efeitos de redes e atuação de fornecedores na adoção de novas práticas contábeis por municípios distantes. Advances in Scientific and Applied Accounting, 12(3), Set. / Dez. p. 120-143
i A evolução dessa retomada vai além do escopo desse artigo. Em resumo, desde 2006 o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) atuava nas emissões das primeiras normas brasileiras para o setor público, e a própria Secretaria do Tesouro Nacional (STN) divulgava já naquela época os primeiros manuais de orientação de contabilização de Receita e Despesas. Antes de 2008 existia uma mensagem de que estava para ser iniciada uma reforma, quando o Conselho Federal de Contabilidade (CFC) divulgava em seus eventos o processo de emissão de novas normas brasileiras, e já tratava da “desejada e possível convergência a padrões internacionais”, mas em 2008 a mensagem passou a ser “existe uma reforma em curso” com autoridade central da STN, com participação do CFC, e com convite à participação de representantes dos diversos atores nos grupos de trabalho formados pela STN.
ii A difusão continua em geral por meio de treinamentos de curta duração (1 a 2 dias), como o SECOFEM.
Os softwares de contabilidade aqui mencionados podem ter diversos níveis de integração com os demais sistemas informatizados nas prefeituras tratadas. Por isso não são chamados de SIAFIC (Sistema Integrado de Administração Financeira e Controle), que como característica central apresentam um mínimo nível de integração pela LC 131/2009. Os SIAFICS são a versão nacional dos Sistemas de Informação Financeira Integrados (Integrated Financial Management Information Systems - IFMIS), aplicativos computacionais que integram as principais funções financeiras. Para mais detalhes dessa discussão ver Aquino et al (2016b).
iii Esta forma de operação pode gerar alguns aspectos negativos para organização contábil do município, que foge ao objeto deste artigo. Brevemente, a cada ciclo político, se a empresa de contabilidade é trocada, pode significar troca de software de contabilidade no município. Uma solução alternativa proposta pela STN foi a adoção de uma solução chamada de E-cidades, mas apesar das promessas da solução, esta vem recebendo críticas por não permitir a integração total de diversos sistemas necessários à execução dos serviços em uma prefeitura. Ainda, o uso de um sistema como este demandaria equipes internas de TI nas prefeituras.
iv http://www.tcm.ba.gov.br/index.php/tcm-disponibiliza-plano-de-contas-aplicado-ao-setor-publico/
v O CRC-BA anualmente realizada o Seminário de Contabilidade Aplicada ao Setor Público da Bahia. No final de 2012 realizou a 5ª edição do evento com o tema exclusivo para o PCASP. http://201.33.22.153/boletins/boletim384/index.html
vi Em 2012, durante o encontro de formação “Operacionalização do PCASP-BA e Aplicação dos Procedimentos Contábeis de 2013” o Tribunal de Contas apresentou sua nova versão Sistema Integrado de Gestão e Auditoria (SIGA).
vii http://www.tcm.ba.gov.br/index.php/tribunal-abre-nova-turma-para-encontro-com-tecnicos-contabeis-municipais/
viii A CNM realiza a Marcha dos Prefeitos, pesquisas de opinião, canais de dúvidas e informativos constantes, normalmente ligadas às questões voltada à representação político-institucional dos municípios junto ao Governo Federal e ao Congresso Nacional. https://marcha.cnm.org.br
ix De acordo com levantamento realizado pelo CFC: https://cfc.org.br/wp-content/uploads/2017/08/estatistico_2004a2016.pdf
x http://betha.com.br/noticia/betha-apresenta-sistema-em-evento-sobre-a-nova-casp-no-paran%C3%A1
xi A indústria de sistemas para governos na última década é orientada para aumento da base de clientes, em que pequenos competidores não têm escala para competir em diversos estados e manter versões para demandas de diversos Tribunais de Contas (Aquino et al, 2017).
1 aaquino@usp.br - Universidade de São Paulo - São Paulo-SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-0329-410X
2 fabricioneves@usp.br - Universidade de São Paulo - São Paulo-SP, Brasil. http://orcid.org/0000-0003-4790-8035
DOI: http://dx.doi.org/10.14392/asaa.2019120307
Artigo submetido em: 31/12/2017. Aceito em: 14/01/2020.